quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Sobre uma Ótica ...

Vilmar tem 44 anos e 19 de “vida psiquiátrica”, como ele mesmo se apresenta. Nossa intenção em trazer este caso a discussão é uma precopupação com o destino de sua doença.

O Hospital de Jurujuba esteve presente, praticamente, nestes 19 anos de psiquiatria junto com Vilmar. Escolho fazer um recorte do caso para poder avançar nas questões que prentendo trazer.
A apresentação de Vilmar para a psiquiatria e, portanto, para a internação, é restrita a um diagnóstico de Transtorno Bipolar do Humor e sempre com sintomas hipomaníacos e/ou maníacos: “vinha uma euforia, uma megalomania, queria comprar tudo, minha família achava que eu estava drogrado”. Porém, Vilmar nos diz que sua doença não se iniciou desta maneira: “fiquei deprimido, não queria ver ninguém, tive perda de memória, não queria sair de casa, parei a faculdade de Educação Física ... depois que veio a euforia”. E era nessa euforia que nos encontrávamos com Vilmar nas internações: sempre muito exaltado, falando alto, inadequado, dizendo que tinha várias profissões, que tinha muito dinheiro, muitos imóveis, fazia muitas dívidas, mas, mesmo assim, parecia ser amistoso. Entretanto, Vilmar logo respondia ao tratamento, as medicações tinham importância fundamental em sua organização e ele logo voltava para a vida: para sua casa (onde morava sozinho e sustentava-se bem com o que ganhava em seu trabalho) e para seu trabalho (que há mais de 10 anos sustentava um vínculo importante). Sobre seu tratamento, ele nunca teve uma regularidade formal, mas reconhecia, e ainda reconhece, a Policlínica Carlos Antonio da Silva como sendo seu local de tratamento. Não era regular, porém ele sempre dava um jeito de informar ao ambulatório como ele estava: se estava bem, em crise ou recém-saído de uma internação.

Vilmar nos parece ser um daqueles pacientes que conseguem manter-se na vida: possui vínculos de trabalho, afetivos, sociais ... basta estar em tratamento que as coisas funcionam relativamente bem. Mas não é mais assim. Há aproximadamente 1 ano temos recebido este paciente para recorrentes internações e percebemos, com muita clareza, que algo não caminha nada bem: o que está acontecendo que, se antes havia um hiato de 2 a 3 anos sem internações, agora ele não tem conseguido ficar 20 dias afastado de nossa enfermaria? É a partir deste ponto que quero partir com ênfase e dando destaque a fala do próprio Vilmar.

Em dezembro de 2008 recebemos Vilmar para mais uma internação. Como muitos da enfermaria já conheciam o caso, creio que foi unânime pensar que seria uma internação breve e como as outras, que ele logo melhoraria e voltaria ao trabalho. Inclusive, “voltar ao trabalho” era parte de seu projeto terapêutico: ele voltava ao trabalho ainda internado e isso o ajudava a retomar sua vida e sair do excesso que a mania lhe proporcionava. Mas, nos demos conta que estávamos diante de um outro Vilmar. Havia uma mudança de quadro dentro de sua habitual apresentação: estava francamente paranóide, explicava o que culminou sua internação alegando que tinha alguém querendo entrar em sua casa, que havia um homem de moto que a rodeava, sentiu-se muito ameaçado. Vilmar já estava diferente, seu olhar era diferente, o jeito com que nos tratava era diferente, estava muito hostil, por vezes inabordável e agressivo, chegando a agredir alguns pacientes e ameaçar nossa equipe.

Durante a internação, questionando porque o paciente não estava em uso de medicação, soubemos que ele estava fazendo parte de um estudo para a testagem de uma nova droga para o tratamento de transtorno bipolar do humor no Hospital Mário Kroeff, no Rio de Janeiro. A drogra em questão era uma associação de Aripiprazol com Ácido Valpróico. Mas, por que estava sem medicações? Como toda experiência, se coloca algo e se retira este mesmo algo. Ele estava em uso desta associação há aproximadamente 2 anos. Estava bem, sem intercorrências ou internações. Segundo ele: “estava vendo nesta pesquisa e nessa medicação uma possibilidade de ficar livre de vez desta coisa psiquiátrica”. Após um período, foi preciso retirar sua medicação e fazer outra associação com carbonato de lítio, o que culminou em uma internação. Ele demorou um pouco pra melhorar, mas isso ainda não chamava tanto nossa atenção para algo novo de fato. Isso passou a acontecer quando Vilmar retornou para a internação apenas 1 mês depois de ter saído e com um agravamento dos sintomas paranóides e certa ideação autodestrutiva: dizia que não queria mais saber dessa vida de psiquiatria, que queria comprar uma arma e atirar em si mesmo e que se fosse para viver como doido ele preferia morar no hospital.

Começamos a estar diante de um novo Vilmar. Ele não conseguiu voltar para o Hospital Mario Kroeff, desejo de sua família que continuasse na pesquisa, não conseguiu retomar plenamente o trabalho passando a ficar difícil sua convivência lá, um local que pessoas o acolhiam mesmo em crise e sua relação com a família passa a se tornar insustentável e precária. Nesta internação, portanto, iniciamos com a Policlínica Carlos Antonio da Silva um trabalho de maior proximidade com o paciente, incluisive com a entrada da AD Raquel no caso. Durante esta internação, eu sinalizava para a equipe da masculina uma impressão que Vilmar passava pra mim naquilo que dizia respeito a sua autonomia: não o via mais como sendo tão autônomo, como capaz de cuidar de si sozinho, de escolher seguir seu tratamento por conta própria, de mediar suas relações na vida sem o intermédio de um terceiro. Era claro que não conseguia cuidar-se mais sem que seus amigos e família estivessem por perto. Porém, não foi possível para essas pessoas seguirem este cuidado, parece não haver brechas para isso, algo aconteceu na relação deles com o paciente que tudo passou ficar insuportável. A saída desta internação foi muito difícil: a irmã recusava-se a comparecer no hospital com a alegação que Vilmar a teria agredido e ela estaria com muito medo dele; o cunhado que, antes se fazia presente, passou a se afastar cada vez mais e passou a ter uma relação muito tensa com a equipe da enfermaria, muitas vezes não concordando com o momento da alta e burlando os encontros e as combinações, deixando Vilmar totalmente desamparado. Com muita dificuldade ele saiu, mas 20 dias depois retronou.
Este retorno parece ter sido marcado por algo definitivo na doença de Vilmar: chegou na emergência após ter tido uma discussão com seu patrão e tê-lo agredido seriamente jogando-o contra a vitrine da loja em que trabalhava. Este momento, a meu ver, foi um rompimento com laços de sustentação que, talvez, tenham que ser rearranjados para uma tentativa de retomada, mas o próprio Vilmar diz: “não tem mais clima para trabalhar lá ... acabou”.

Vilmar é outro paciente. Tem estado de modo diverso. Nem delirante, nem perseguido, nem maníaco. Apenas “enjoado”, significante usado por ele em vários momentos para dizer como se sente em mais uma internação. Vilmar se compadece de si próprio: “estou cansado de ser doente, a vida de psiquiatria é pior que de presidiário ... presidiário cumpre a pena e vai embora, maluco fica pra sempre estigmatizado ... minha vida não se derenrola, só anda pra trás, estou cansado e tentando ver onde vou me encaixar”. Ele tem falado em sentir-se ameaçado, desafiado pelas pessoas e pensa em comprar uma arma para se defender disso. Acha, de fato, que as pessoas estão confrontando mais ele. Justifica-se dizendo que se elas fossem mais sutis ele não explodiria. Em uma ocasião em que estava com Thaiana (estagiária), estava lendo uma letra de música e parou na seguinte frase: “... quando eu estiver louco, sutilmente se afaste” e conclui: “é isso que as pessoas não conseguem fazer, elas tem que se fastar de mim quando estou com raiva ... dá pra perceber, as minhas veias enchem”.

Minha questão gira em torno de uma nova posição que ele tem encontrado em sua doença. Este “enjoo” fala de uma posição melancólica? Quando pergunto melhor isso pra ele, do que se trata esse enjoo, ele não consegue explicar, mas tenta fazê-lo buscando localizar quando isso aconteceu e afirma que foi depois da pesquisa que passou a sentir isso. Achava que com aquele experimento teria “liberdade” e agora percebeu que se frustrou mais uma vez: “não consegui construir nada, não tenho família, não terminei minha faculdade”.

Penso em poder localizar em que ponto este “enjoo” fala de uma causa e não de um efeito. Não é porque ele está internado recorrentemente que ele fica enjoado, penso ser o inverso, é o enjoo que causa nele algo que o faz romper com a vida que levava e parece ter transformado a posição dele no mundo. Ele me perguntou: “que graça tem a vida agora?”. Parece que o experimento fez dele o próprio objeto. Minha questão está em torno desta condição BI-polar de Vilmar: em um primeiro momento ele era tomado pelo objeto, esse objeto que o deixava maníaco, eufórico, deslumbrado e agora, me parece que assumiu, a partir da pesquisa, uma posição de ser o próprio objeto, de ser um dejeto que não tem razão de viver, que não tem propósito, planos, futuro. As duas posições são graves, mas a segunda me parece falar de uma mortificação, de uma conformação a uma posição de objeto.

Diante disso, a que serve a internação? Demovê-lo de uma posição ou de outra? Ele diz que temos medo de dar alta pra ele? Medo de que ele faça alguma “merda” maior. Não duvido. É preciso saber de que Vilmar estamos tratando agora.
Adriana Cabana de Q. Andrade.
Setembro/2009

Um notável ignorado.

Falaremos de “Ig”, paciente internado em nossa enfermaria desde 13/11/2006 e assim “batizado” por nós e por quem atende por esse nome quando solicitado. Nossa angústia de não saber como chamá-lo, transformou a burocracia em nome: Ignorado ... “Ig”. Ele é branco e aparenta ter entre 20 e 25 anos.

Chegou ao SRI em novembro de 2006, trazido por ambulância da Ponte Rio-Niterói pois estava andando naquela via, sentido Rio de Janeiro, colocando-se em risco. Estava sem nenhum documento ou qualquer identificação. Encontrava-se bastante assustado e segurava um papel de firma de empréstimo (BMG). Trajava camisa branca com o nome “Forja Steel – São Paulo”, o que nos fez tentar imediatamente entrar em contato com esse local, mas suas características não foram reconhecidas por ninguém de lá.
Não cooperava com o exame físico realizado por médica da emergência, não permitindo que ela o tocasse, e pareceu amedrontado quando aferiram sua pressão arterial. Foi encaminhado a nossa enfermaria de observação onde foi alimentada e feita sua higiene corporal. Tomou banho só, mas necessitou de auxílio para tal.
Durante o período em que permaneceu na observação na emergência, seu comportamento oscilava em permanecer em seu leito todo coberto dos pés a cabeça ou tentando fugir do hospital, tendo que ser impedido por nossa equipe, o que o fazia reagir de maneira ativa, oferecendo resistência a retornar e tentando retirar suas contenções com a boca, mordendo-as. Nos momentos em que estava sendo contido, gritava muito, mas não conseguia pronunciar uma palavra, embora haja relatos de já ter dito “tio/tia”, “banho”, “tênis”, “biscoito”.
Permaneceu durante todo o tempo em mutismo. Em determinados momentos chegamos a suspeitar de atividade alucinatória mas isso não ficou claro naquele momento, pois ele apresenta sinais e sintomas tanto de um quadro de retardo como de autismo ou uma psicose infantil, o que nos faz não ter, até hoje, alguma concordância em termos de diagnóstico. Tendemos ao lado dos transtornos infantis.
Observamos importante episódio que se repetiu no SRI e no início de sua internação na enfermaria masculina: assustava-se e demonstrava certo medo, chegando a sair da sala de TV, ao passar reportagens sobre um caso de seqüestro. No início de sua permanência na enfermaria masculina, ficava deambulando perto da porta de entrada e no primeiro sinal de abertura da porta, ele fazia tentativas de sair, o que hoje não ocorre mais. Hoje, quando ele deseja sair, pega nossa mão e leva até a porta e quando dissemos para que ele espere, que ainda não é hora de sair, ele consegue aguardar.
Atualmente, “Ig” come cozinho, escolhe o que quer comer nas refeições: quando não gosta de algo empurra a mão da copeira para que ela não coloque em seu prato; aproxima-se da equipe de modo mais adequado, embora apresente comportamento bastante inadequado em alguns momentos, como se masturbar no pátio externo do hospital, sem importar-se com a presença de outras pessoas, fazendo tal ato de maneira bizarra: deitando-se no chão, esfregando-se e sem utilizar as mãos.
Diante disso, tomamos providências como encaminhar sua foto para APAE-RJ, FIA, Pestalozzi, Polícia Civil e Federal, para o cadastro de pessoas desaparecidas, Instituto Felix Pacheco, de onde foram recolhidas suas digitais para exame papiloscópico, sem nenhum sucesso.
Até então, nenhuma palavra havia, de fato sido, pronunciada. Em alguns momentos, até achávamos que ele havia dito algo pelos seus balbucios e barulhos, mas nada era muito claro. Poderia ser nosso desejo para que ele falasse e não tínhamos clareza do que era dito.
Em determinado momento de sua internação, Dr. Marcelo opta pela retirada de toda a medicação. Estava em uso de antipsicóticos e benzodiazepínicos, permanecendo somente com o benzodiazepínico. O que observamos é que “Ig” passou a circular mais pela enfermaria, buscar mais nossa equipe, demonstrar o que queria. Corria pela enfermaria, rindo e colocando as mãos nos ouvidos naquilo que era uma franca atitude alucinatória.
Nossa enfermaria, então, entra em obras. Os quartos foram pintados, as camas foram trocadas de lugar. No dia em que o pintor estava pintando o quarto em que ficava sua cama, ele não permitiu que o funcionário subisse na escada: fechava a escada e pegava a mão do pintor e o retirava do quarto. Tentamos intervir, sempre lhe direcionando a palavra, mas ele foi irredutível e não permitia nossa aproximação na escada. Foi preciso retirá-lo, o que reagiu de maneira veemente, fazendo movimento ao contrário. Foi preciso utilizar mais força ao que “Ig” falou: “me solta, me larga ... me solta, me larga!”. Após o susto tomado por nossa equipe porque ele, de fato, falou algo, ele precisou ser medicado e permaneceu mais tranqüilo.
A partir deste dia, “Ig” passou a falar mais, mas nunca seu nome. Dizia “biscoito” quando saía da enfermaria, apontava para a porta e dizia “lá fora” e fazia o mesmo movimento, feito até hoje: sai correndo pelo hospital (e a equipe atrás), vai até o SRI, entra na enfermaria de observação, às vezes vai até o último leito e volta. Movimento sempre acompanhado de risos e corpo trêmulo.
Nesses momentos em que ele falava algo, sempre perguntávamos seu nome, onde morava, quantos anos tinha. Um verdadeiro questionário: “se ele fala vai ter que dizer o nome”, era o que desejávamos dele. Isso se tornou desastroso. Ele passou a responder à nossa convocação, mas de uma outra maneira: masturbando-se! Todos os dias, várias vezes ao dia lá estava “Ig” deitado no corredor da enfermaria, no posto de enfermagem, na sala dos técnicos, na sala de TV, no refeitório, no pátio externo, no SRI. Sempre na presença de alguém, ou melhor, sempre na circulação de alguém, nunca sozinho. Isso que antes entendíamos como uma possibilidade mínima de se mostrar como sujeito, passou a ser um problema constrangedor, mas para a equipe, porque para “Ig”, a sensação que temos é que, neste momento, parece que ele está só. Frente à isso, passou a ficar mais agitado, mais agressivo, o que fez com que optássemos pelo retorno da medicação antipsicótica.
Porém, ao mesmo tempo em que pensamos que ele está só em seu mundinho, somos surpreendidos por outro episódio: há duas semanas atrás, a equipe estava na sala de coordenação e escutou uma batida forte na forte. Quando fomos ver o que era, encontramos “Ig” correndo pela enfermaria muito assustado e acuado. Fomos até ele para saber o que teria acontecido e ele verbalizava, nervoso, gaguejando: “ca-ca-ra-ca ... mar-mar-mar-ce-lo!” Imediatamente, tomados pelo desejo de que ele repetisse e nos dissesse o que teria ocorrido, perguntávamos: “Marcelo? Você é Marcelo? Marcelo é seu nome? Quem é Marcelo?” Mas ele nada mais falou. Foi levado para a sala de coordenação em mais uma tentativa para que ele falasse, mas ele nada disse, apenas aceitou os biscoitos que lhe foram oferecidos. Neste mesmo dia, a equipe de enfermagem nos comunica que a cama de “Ig” estava junto da cama de outro paciente que tem “Marcelo” em seu nome.


Diante disso, inúmeras questões nos suscitam:
1.Questionamos sua permanência em uma enfermaria de agudos. Até onde a internação tem, de fato, uma função em seu caso?
2. De que caso se trata? É um autismo, uma psicose infantil, um quadro de retardo? Com que clínica estamos lidando. Em determinado momento recorremos à equipe do CAPS I, não por acreditar que “Ig” seja uma criança ou um adolescente, mas para nos auxiliar na condução do caso, já que é a clínica que mais se aproxima deste caso. O que ficou claro, é que um trabalho já estava em andamento na enfermaria e era importante que outras pessoas não entrassem neste circuito, para que o vínculo dele com algumas pessoas na enfermaria, vínculo já preservado, pudesse ser fortalecido.
3.Mas, e agora? O que fazer? Pra onde referenciá-lo? Pra onde encaminha-lo? Para que moradia, para que tratamento?

Um ano após a apresentação deste trabalho, Luiz Carlos, nosso "Ig", foi reconhecido por nós após divulgação de sua foto no jornal Extra na coluna 'Crianças Desaparecidas'. Um acompanhamento estava em andamento e ele pôde, após termos chamado-o pelo nome verdadeiro, responder com um lindo sorriso e ser entregue a sua família de origem. Morador de Jacarepaguá, foi encaminhado para tratamento na rede de saúde mental do município do Rio de Janeiro. Seu desaparecimento foi em decorrência de um minuto de descuido de sua carinhosa mãe com o portão da humilde casa.

Adriana Cabana de Q. Andrade. (Junho/2007)


terça-feira, 14 de abril de 2009

Quando o cuidar de um é cuidar de dois.

O caso de Rodrigo nos remete diretamente ao caso de sua mãe. Rodrigo tem o diagnóstico de Retardo Mental com alguns sintomas psicóticos. A complexidade de seu caso nos leva a assegurar a importância de também assistirmos a família de nossos pacientes e de como, às vezes, é preciso recuar em uma alta para que um outro familiar possa também se tratar. Nossa equipe, em nossas discussões sobre o caso, parece ser unânime na sensação de que “Rodrigo passou do ponto da alta”. Porém isso foi inevitável. Sua mãe, que acredito ser uma psicótica, embora isto também seja uma discussão, no momento em que iríamos formalizar a alta de Rodrigo, em que encontrava-se em condições para retomar seu tratamento no CAPS, D. Ana tem sua primeira internação psiquiátrica, de fato, em nossa enfermaria feminina. Em tratamento em ambulatório, já havia passado pela emergência psiquiátrica em outras situações mas nunca tinham lhe indicado uma internação. Tivemos que recuar neste momento, pois apesar de Rodrigo ter outros dois irmãos (Julio, que mora na mesma rua e Ana Lucia, que mora com Rodrigo e a mãe), não é possível Rodrigo estar em casa sem a presença da mãe.

Uma das questões que nos fizeram pensar em refletir neste caso é a evolução da doença de Rodrigo, aparição de novos sintomas e a concomitante evolução da doença psiquiátrica de sua mãe. Quando um piora o outro piora, quando um melhora, o outro melhora.

Todas as internações de Rodrigo foram pelo mesmo motivo: heteroagressividade direcionada à mãe. Ele bate nela e bate mesmo! O que ele fala disso? “Ela não cuida mais de mim!” E isso é verdade quando ela não está bem, somente fica deitada na cama, sem alimentar-se e por dias sem tomar banho. D. Ana e Rodrigo tem uma relação confusional, simbiótica.. Ela o chama de “meu bebê, meu filho especial”. Ela “o cobre de noite, dá comida batida no liquidificador para ele não se engasgar, limpa sua bunda depois que ele faz cocô”. Ele a chama de “minha mamãezinha querida, ela me cobre, me dá comida e me limpa”. Nos momentos que Rodrigo está agressivo, ela o coloca de castigo: “o amarra em casa para ele pensar no que fez”. Uma vez chegou a levá-lo para ver o corpo de um homem morto no intuito de que ele se comportasse.

Rodrigo tem história de problemas em seu desenvolvimento desde a infância. Estudou pouco porque não conseguia aprender. Levava uma vida limitada mas conseguia produzir dentro de seus limites: chegou a trabalhar entregando gás e gostava do que fazia. O pai dele faleceu há mais ou menos 15 anos e Rodrigo presenciou o infarto do pai.

A história institucional de Rodrigo na psiquiatria coincide com o período em que a irmã Ana Lucia vem morar com Rodrigo e a mãe, após separação conjugal. Ana Lucia parece separar outro casal: Rodrigo e a mãe. Apesar de toda a dificuldade, Rodrigo e D. Ana pareciam se entender, mas Ana Lucia era contra a mãe fazer todas as vontades do filho: “ele passa o dia gritado: mãe me limpa, mãe me cobre, mãe me dá comida, é um inferno! Eu não deixo ela fazer nada, Rodrigo não é mais criança, ta muito grandinho, daí ele vai e bate nela!”. A mãe retruca: “Meu filhinho é especial, eu não queria engravidar, mas se Deus me mandou um filho assim mesmo, mesmo contra a minha vontade, eu tenho que cuidar. Deus dá um filho especial a quem é também especial, só pra quem pode cuidar. E eu cuido dele muito bem!”

Em 2004 Rodrigo iniciou o uso de medicação psiquiátrica após ter presenciado a primeira tentativa de suicídio da mãe. Começou a apresenta-se agressivo e impulsivo. Seu discurso apontava a possibilidade de vivências psicóticas, mas eram pouco elaboradas e muito fragmentadas. Dizia que via seu pai morto e que ele estava lhe chamando para perto dele: “a alma do meu pai está me chamando, tenho certeza que ele está lá na janela da minha casa, a minha mãe fala com ele: vem Onofre, venha nos ajudar!”

As internações de Rodrigo tem sempre o mesmo curso, porém nesta última o que mais se apresenta é uma intensa vivência alucinatória. Ele é sempre muito querelante, pede que coloquemos sua roupa, que de a ele a comida na boca, que o cobrimos na cama, chama a todos de “tia/tio” ou quando consegue gravar um nome, chama a todos por aquele nome. Nesta internação reconhece Júlio como alguém que faz uma diferença, como alguém que cuida dele no CAPS e o CAPS como o lugar de seu tratamento. Rodrigo joga-se muito no chão, machuca-se muito a ponto de ser suturado várias vezes. Ele ora diz que não sabe o que acontece, ora que está com saudades da mãe, ora que cai porque tem uma baleia dentro dele que come ele por dentro e que ela não quer ficar caindo porque não quer morrer, quer que a baleia morra! Por vezes, sente-se perseguido, fala que querem mata-lo, anda nu pela enfermaria, entra várias vezes no banho, vai várias vezes ao banheiro, agride outros pacientes impulsivamente. Já chegou a agredir algumas pessoas da equipe. Fala que “escuta uma voz que o manda não bater, mas ele não pode obedecer esta voz, é uma voz de mulher malvada”.

O que mais nos deixa preocupados com Rodrigo é a constante oscilação em seu quadro. Passa uma semana muito desorganizado, com franca atitude alucinatória, sai correndo pelo hospital, já foi para a rua colocando-se em risco, sua feição muda, parece de fato estar sofrendo muito. E no dia seguinte está bem, sem cair, deambulando com mais firmeza, participando de atividades, conversando sobre sua vida.

No último mês de internação obteve piora de seu quadro. Talvez pela internação de sua mãe. Ficou duas semanas sem vê-la. Pedia muito para encontra-la. Em conversa com a equipe que a assistia na enfermaria feminina, optamos por promover alguns encontros e um deles me chamou muita atenção. D. Ana chorava muito ao ver Rodrigo e dizia para ele: “meu filho, amor da minha vida ... você está vivo, achei que você estivesse morto e que as pessoas estavam me deixando aqui para que eu não fosse no seu enterro”. Rodrigo nada falava, aliás nesta visita permaneceu em silêncio durante todo o tempo. Perguntei a ela porque ela achava que Rodrigo estava morto e ela conta que o Diretor do hospital disse isso a ela em uma entrevista que fez com ela: “ele disse assim: D. Ana, você tem que deixar seu filho seguir o caminho dele! Seguir o caminho dele sem mim, só morrendo, achei que ele tinha morrido! Mas nem morto eu vou me separar dele! Se eu tiver que morrer, se eu sentir que estou morrendo, eu mato o Rodrigo e depois morro em paz!” Rodrigo nada falou e a única coisa que me ocorreu em intervir foi dizer a ela que não tinha entendido o que ela tinha me falado. Ao que ela me explica: “Simples: eu mato o Rodrigo e depois me mato!”

Essa é minha grande preocupação neste caso: que isso de fato aconteça.
Parece só haver vida em Rodrigo e D. Ana quando estão juntos, porque separados parece só haver morte, uma morte subjetiva que pode chegar as vias de fato. Ao mesmo tempo que isso nos preocupa, não há como pensar em separá-los. Onde há perigo? Juntos ou separados?

Quando Rodrigo está sob intensa atitude alucinatória nada oferece uma barra, nenhum comando, nenhuma força física, ele anda sem rumo e o que o faz parar é a seguinte frase: “Rodrigo, vamos ver sua mãe!” Ele imediatamente pára e consegue nos escutar. Será que a mãe, que é quem o invade sempre é o que lhe oferece também uma barra?
Adriana Cabana de Q. Andrade.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Algumas considerações sobre o desafio da desinstitucionalização.

* Texto apresentado em seminário interno na enfermaria masculina de hopsital psiquiátrico no município de Niterói. Nomes dos pacientes são fictícios.

A equipe da enfermaria masculina tem retomado uma importante afirmação: “não podemos esquecer que este lugar é para pacientes agudos”.
Por pacientes agudos entendemos aqueles que estão em crise, em intensa vivência delirante-alucinatória, desorganizados, em risco iminente de vida por sua própria condição subjetiva. Nosso trabalho, através de instrumentos de cada especialidade, visa debelar a crise, tentar afastar o sofrimento de nossos pacientes, fazer com que a realidade psíquica deles não seja tão avassaladora como se apresenta. Com este desafio parcialmente concluído, digo parcialmente porque nossa intenção não é o pleno reestabelecimento de uma unidade anteriormente cindida, mas um certo acolhimento para o sofrimento que nos é apresentado, entendemos que a rede extra-hospitalar tem função primordial de assumir os cuidados e passar a auxiliar os pacientes no difícil trato social, sempre com nosso respaldo e levando em conta que nosso trabalho é em rede, ou seja, quando um paciente está em nossa enfermaria, isso não significa que ele “é nosso paciente”, ele está sob nossos cuidados, mas ele é de responsabilidade de todos que o cercam, incluindo sua família, e o que procuramos seguir é uma direção única de trabalho com os nossos parceiros da rede.
Entretanto, esse circuito não é simples assim. Como tratamos de sujeitos, e ainda psicóticos, nosso trabalho é permeado por inúmeras questões, situações e impedimentos que, muitas vezes, nos fazem recuar em uma visita, uma licença, uma alta e até em um projeto terapêutico.
Dos nossos 35 leitos rotativos temos 5 casos com características outras que não o objetivo de debelar a crise: são casos de grave institucionalização, casos sem suporte social algum, casos para vinculação em dispositivos extra-hospitalares e, nesta seqüência de casos com características outras, Joaquim, um conhecido de nossa instituição por já ter vivido muitos anos dentro do hospital mas que, neste momento, está em crise, uma crise familiar que invariavelmente, torna-se uma crise psicótica grave.
Joaquim dispensa, neste momento, uma apresentação detalhada de sua história de vida, pois meu objetivo aqui não é esse, mas basta citar uma frase sua que tem repetido nos últimos meses: “tenho 40 anos de psiquiatria, estou cansado disso tudo!”. Joaquim é esquizofrênico com sintomas já residuais. Ele conta que sua primeira internação foi quando era muito jovem, quase uma criança e que desde então sua vida é “viver dentro do hospital”.
Como já foi dito anteriormente Joaquim morou muitos anos dentro deste hospital e isso lhe trouxe vários prejuízos inegáveis como sua forte ligação com a instituição e com isso a proteção que esta lhe oferece: proteção de si mesmo, proteção do laço social extra muros e, atualmente, proteção de sua família, recorte fundamental nesta explanação e ponto de partida para minha proposta de discussão. Por outro lado, os ideais do processo de desinstitucionalização nos fizeram refletir que a aposta em uma vida fora do hospital, se possível, no seio familiar, é o que nos norteia para um trabalho de busca de inclusão social.
Após anos de moradia no Albergue, uma aposta foi feita para que Joaquim saísse do hospital e fosse acolhido no Programa de Residência Terapêutica (RT) de nosso município. Porém, seu quadro clínico marcado por explosões comportamentais, auto e heteroagressvidade, confusões e vivências delirantes, fizeram com que sua permanência neste dispositivo se tornasse inviável. Em dezembro de 2007, ainda em período de adaptação nesta nova moradia – RT – Joaquim vivia momentos de muita angústia, não diferentes dos que apresentava no Albergue, ou durante sua vida toda, pois afinal, não deve ter sido por outro motivo além da impossibilidade de circular no trato social que permaneceu durante tanto tempo em nossa instituição. Neste período de adaptação na RT, alegava que estava difícil viver um uma casa com outras pessoas, compartilhar as coisas com outros. Quando questionado que isso não era muito diferente do que vivenciava no Albergue ele respondia: “mas lá não é hospital, é casa!”, como se dentro do hospital algo pudesse mediar sua impossibilidade de exercer-se no trato social, como se aqui dentro do hospital fosse permitido que João encarnasse a afirmação: “se estou aqui é porque não posso estar lá fora”. As mesmas afirmações, o mesmo queixume, aquilo que sempre dizemos “o Joaquim é assim mesmo”, continuava a repetir-se: ele dizia que queria morrer, que iria jogar-se na frente de um ônibus, queimava-se de cigarros, entrava em constantes conflitos com outros moradores e, em especial com Maria, para quem arremessou um cabo de vassoura e a ameaçou de morte. Este episódio culminou em uma internação em nossa enfermaria no fim de 2007 que durou aproximadamente um mês, com retorno para a própria Residência Terapêutica. Durante tal internação, no início, Joaquim alegava que “queria voltar para o Albergue, e caso isso não fosse possível iria morar com seu tio em São João de Meriti, que se voltasse para a Residência, iria colocar fogo em tudo, inclusive em si próprio”, Era hostil com a equipe e com outros pacientes, quebrou vários objetos da enfermaria como cadeiras do refeitório e a maçaneta da porta da Terapia Ocupacional, além de objetos pessoais, como rádios que ele mesmo comprava. Recusava suas idas ao CAPS, assim como algumas refeições, passando a fumar mais e beber muito café. Vale lembrar que o paciente é hipertenso e diabético. Sua melhora passou a ficar evidente quando mostrou-se mais adequado na enfermaria e no CAPS, queixando-se menos e solicitando seu retorno para a Residência, alegando que “iria deixar a Maria para lá!”. Após retomar sua freqüência no CAPS, e sua permanência na RT, Joaquim saiu de alta no dia 22/01/2008.
Retornou a emergência no dia 25 deste mesmo mês, ou seja, 3 dias depois: “(...) as discussões com outros dois moradores são freqüentes e as ameaças de tirar a vida de outro também. Após decisão das equipes (RT/Hospital/CAPS) o paciente foi retirado da casa e encaminhado a emergência com orientação de permanecer internado no SIM. João mostra-se calmo, cooperativo, mas diz que foi ‘expulso’ da Residência. Conta que desde que foi morar lá, recebia ameaças da paciente Maria” (SIC prontuário). É importante ressaltar que a decisão de não permanecer mais no Programa de Residência Terapêutica, estendeu-se a mais duas outras moradoras, incluindo Maria a quem Joaquim afirmava ser a causadora de todos os seus males.
Com isso, um novo projeto terapêutico direcionado pelo CAPS, apontava uma possibilidade de retorno à família, que neste momento era a filha, o genro e dois netos. Este trabalho, portanto, foi iniciado pelas duas equipes, CAPS e Enfermaria.
Apesar de sua constante oscilação, o trabalho literal ‘de volta para casa’ parecia caminhar para frente. A psicóloga do CAPS iniciou um trabalho importantíssimo diretamente no território de Joaquim: visitas na casa da filha, licenças assistidas, construção de um quarto para Joaquim nesta casa onde teria seus próprios objetos assim como sua privacidade. Parece que foram gastos cerca de R$2.000,00, do dinheiro dele, para que este projeto fosse viabilizado. Porém, como disse anteriormente, impedimentos nos fazem recuar nesta clínica: a sogra da filha de Joaquim vendeu a casa onde ele iria morar e onde havia construído, materialmente e subjetivamente, um lugar para si. Seus pertences foram suprimidos assim como a confiança que João depositava em sua família.
Joaquim, aquele que durante anos teve um lugar institucionalizado, quando começa a vislumbrar a possibilidade de um novo lugar subjetivo, tudo parece ruir, ou melhor, não há nada o que ruir porque não há mais lugar. No decorrer deste processo, sua psicóloga afasta-se do CAPS por uma licença maternidade e Joaquim recebe outra notícia: sua filha fez um empréstimo consignado no banco onde esse valor ainda nos é desconhecido, mas sabemos que ele passa a receber apenas R$180,00 por mês.
A resposta que Joaquim dá a esse momento é de muito sofrimento: “me deixa morrer logo então, me dá chumbinho, deixa eu sair pra me afogar na praia, não vale mais a pena viver”. Passa a beber muito café com açúcar, comer muitas balas, fumar compulsivamente, não alimentar-se, recusar medicações e a aferição da pressão.
Este é o Joaquim! Mas não me conformo com esta afirmação!
Há um dado de realidade neste momento: ele está desacreditado em sua família, está novamente sem lugar material e subjetivo e isso se reflete em suas palavras de agora: “minha filha só quer meu dinheiro ... meu genro bate nela e nas crianças, a próxima vez que ele fizer isso eu mato ele ... eles são ingratos!”
Diante desta impossibilidade real de morar com a filha porque, com a venda da casa, também não tem um lugar para ela, a direção continuou sendo a referência familiar, mas a casa da mãe. Ele parece aceitar, mas algo novo na sintomatologia de Joaquim, pelo menos para nós na equipe da enfermaria, começa a surgir. Joaquim narra uma trama delirante para mim e para seu psiquiatra que tem estado mais enfraquecida, mas por vezes retorna: “não há como morar com sua mãe pois ela é X-9, trabalha para o tráfico de drogas e eles podem entrar na casa de madrugada enquanto estiver dormindo e matá-lo. Lá e muito perigoso, sua mãe é muito nervosa e não pode cuidar dele.”
Estamos acostumados (o que não é nada bom) a ver Joaquim sem conseguir sustentar aquilo que diz: vai morar com a filha, depois não quer mais morar com a filha; vai morar com a mãe e depois não pode mais morar com ela por uma impossibilidade delirante; então oferece como solução ir morar com o padrinho em São João de Meriti e fazer tratamento lá, o que para mim parece ser da mesma ordem de impossibilidades.
Meu temor é que estejamos valorizando demais a construção de um lugar material para abrigar Joaquim enquanto pessoa, corpo que não pode ficar na rua, que tem que ser cuidado se não busca a morte, seja por qual via for, pela palavra, pelo excesso de açúcar no café, pelas queimaduras de cigarro, pela injesta de medicamentos com cachaça no próprio CAPS, até um episódio de suposto AVC onde resultou em dias de uma internação clínica. Temo que estejamos tão imbuídos e envolvidos pelo que chamamos, por vezes, de descaso familiar, que estejamos nos esquecendo de João psicótico, aquele que me parece que está querendo nos dizer que ser pai, sogro, avô, filho e provedor da família, não é seu lugar. Joaquim não tem um lugar concreto, como não me parece ter um lugar subjetivo onde possa identificar-se minimamente com alguma função que possa lhe trazer uma certa amarra na vida.
Temo ainda mais ter que afirmar que ele parece identificar-se com algo: com o lugar de maluco: “me deixa aqui ... o hospital é minha casa. Foi aqui que vivi, é aqui que quero morrer!”
Não podemos esquecer que Joaquim é um sujeito, precário, mas é, e como sujeito utiliza-se da linguagem.
Não podemos deixar de ressaltar e convocar uma discussão para aquilo que neste momento é mais patente para a equipe da enfermaria masculina: o retorno de Joaquim para o seio familiar, neste momento, está sendo totalmente desagregador para ele. É uma convocação a uma posição que ele não pode assumir.
Joaquim não está nem na RT, nem em casa, nem na enfermaria. Está de volta ao Albergue, o único lugar possível para ele habitar, mas não sem problemas, que se repetem e são infinitos.
Retomando o título deste trabalho, acredito que seja por isso que Joaquim é um desafio à desinstitucionalização.


Adriana Cabana de Q. Andrade

Na internação psiquiátrica, em quê se deter?*

* Texo apresentado em seminário interno da enfermaria masculina de hospital psiquiátrico no município de Niterói. Nome do paciente é fictício.

Em março de 2008 tivemos em nossa enfermaria masculina Ismael, paciente de 28 anos que possui em sua história de vida um longo percurso na psiquiatria. Porém, em seus 13 anos de história psiquiátrica, ainda não conseguimos oferecer a Ismael qualquer resposta. Talvez, pelo fato dele não formular pergunta alguma. Nenhum pedido de ajuda é direcionado, nenhum sintoma produtivo de caráter delirante ou alucinatório é evidente.
Quem é Ismael? Sabemos caracterizar alguém, definir sua personalidade, através de seus atos e principalmente de seu discurso. Ismael é assim: “nervoso”, como ele mesmo se define. Tal significante parece colar-se em tantos outros: impulsividade, heteroagressividade, atitude desafiadora, postura reivindicativa e pedante. Quando vamos falar de Ismael, invariavelmente, um destes adjetivos está presente. Mas isso não me basta!
A relação com Ismael é sempre tensa. Nunca se sabe o que virá: quando não está aos brados em seu constante tom de voz alto, está em silêncio, um silêncio interrompido por implicâncias a outros pacientes em tom de voz quase inaudível. Ele está completamente adaptado à rotina da enfermaria. Ismael, institucionalizado? Como é possível? Quando pensamos na desinstitucionalização, logo nos remetemos a um trabalho com pacientes com baixo poder contratual, nada autônomos, dependentes de outros. É difícil encaixar Ismael neste triste capítulo da psiquiatria. Ele parece ter condições mínimas de cuidar-se, mas a meu ver, somente parece.
Em pesquisa em seu prontuário deparei-me com alguém exatamente como hoje: hostil, agressivo, desafiador, simulado e dissimulado. Isso nos falaria de quê: a primeira vista de um transtorno de personalidade. Seu prontuário está impregnado de F60 e F91, respectivamente, transtorno de personalidade e transtorno de conduta. Resisti muito em afirmar que Ismael possa se encaixar no que chamamos de eixo II. Durante todo o tempo em que está internado, sigo qualquer pista que possa me dizer que isso ou aquilo pode ser psicótico. Confesso que tenho tido muitos impasses e é por isso que compartilho aqui a dificuldade de diagnóstico deste caso e com isso a dificuldade de condução terapêutica.
Ismael chegou a nossa emergência pela primeira vez em junho de 1998. Veio acompanhado de sua mãe, recém-saído do Centro Psiquiátrico Pedro II, hoje, Instituto Nize da Silveira, onde não pôde mais permanecer em internação pela sua idade. Estava com 18 anos. Já havia sido internado lá por diversas vezes desde 15 anos de idade. A queixa principal era: “nervosismo”. Ele mesmo explicava isso como sendo uma reação às situações em que se sentia provocado pelo outro com brigas ou quebrando as coisas. Apresentava-se irritado e querendo logo saber se seria ou não internado. Ismael parecia possuir certo déficit intelectivo, não conseguia responder algumas perguntas sem ajuda da mãe. Foi encaminhado ao ambulatório onde esteve em tratamento de forma mais ou menos regular durante quase um ano e meio, rompendo pelo afastamento de seu médico residente na época a quem Ismael tinha um certo vínculo, apesar de inúmeras faltas injustificadas. Seu médico questionava-se várias vezes se ele de fato tomava a medicação. Ele comparecia, quando não atrasado, muito antes da consulta, exigindo ser logo atendido: “Importante destacar que o tom da voz de Isaque é sempre elevado e em crescente e quando é interrompido alega ser ‘nervoso’. Estranhamente solicita orientações para caso venha a obter trabalho de carteira assinada, se conseguiria, após 6 meses, ‘se encostar’, assim como pessoas que ele conhece. Digo então que ele sequer começou a trabalhar e já pensa em se encostar. Logo em seguida, ri dissimuladamente, dando-me a impressão de saber exatamente o que faz. O ganho secundário é deveras evidente”. (Prontuário)
Em abril de 1999, retornou ao tratamento no ambulatório justificando suas faltas porque estava internado em hospital psiquiátrico em São Gonçalo. Sempre hostil, irritado, queixando-se do tal “nervosismo”. Vale destacar que a mãe sempre estava presente e implicada no tratamento do filho. Sempre o acompanhava e comparecia para buscar as medicações quando Ismael não queria ir.
Em junho de 1999, Ismael solicitava internação a seu médico em toda consulta alegando que estava “muito nervoso”, mas não apresentava nenhum sintoma produtivo ou outro qualquer que indicasse uma internação.
Em outubro do mesmo ano foi até a emergência e fez o mesmo pedido e como não foi atendido, tornou-se extremamente agressivo, queria sair da consulta a todo o momento, não aceitou as medicações: “Alegava que não virá mais ao HPJ porque aqui não é internado. Justifica os pedidos de internação porque fica sozinho o tempo todo. Está ‘exilado’ em São Gonçalo em razão do seu comportamento explosivo e, não raro inadequado. No momento sem convívio com a família, o que é inviável”. (Prontuário)
Ismael passou a não morar mais com a mãe por imposição dos tios que culpavam a mãe dele por ele ser como é. Morava sozinho em um quarto alugado pela mãe que também assumia todas as despesas.
Em janeiro de 2000, um novo pedido de internação de Ismael é corroborado por sua mãe que alegava que a convivência estava insuportável. Em março deste ano ele é internado no HPJ por 10 dias. Permaneceu, durante a maior parte do tempo, inquieto, logorreico, irritado, com pensamento perseverante em relação a inúmeras queixas somáticas: cefaléia, tosse, enjôo, tonteira, porém o “nervosismo” não parece entrar nessa série. Ele é uma justificativa para seus atos. Isaque passou a falar muito de problemas com os vizinhos, fato que foi confirmado pela mãe e pela avó: “ele é muito encrenqueiro”. Ismael apresentava atos destrutivos na enfermaria: quebrava portas e louças dos banheiros, fazia ameaças à equipe. Não apresentou sintomatologia psicótica produtiva em nenhum momento.
Em agosto de 2000 uma nova internação na enfermaria masculina. Desta vez, veio trazido pelos tios após briga física com a mãe em que a ameaçava com uma faca. A família alegava que a relação estava insuportável com a família e com os vizinhos que, permanentemente, tinham que “salvar” a mãe de Ismael de suas agressões. “Falam dele como um delinqüente e que não podem mais ficar com ele, solicitam uma internação para sempre ou uma ordem judicial para que ele não chegue mais perto da mãe”. (Prontuário)
Durante esta internação, a equipe perguntava-se: tratava-se da personalidade de Ismael ou existe um grau de comprometimento psíquico que justificaria esse comportamento heteroagressivo sistemático? A relação familiar tendia ao abandono e a já relatada tendência ao hospitalismo tornava-se cada vez mais evidente. Ismael permanecia pouco tempo distante das longas internações. Não havia nenhuma produção delirante ou alucinatória. A avó posicionava-se de maneira radical: “ele não é maluco não, ele é bem esperto, ele sabe com quem briga, com quem mexe ... ele pode até ter um problema de cabeça porque não conseguiu estudar direito, mas é safado também, ele é mal, é mau caráter ... ele não vai morar com a mãe e ponto final, isso já está decidido”. Em determinado momento, Ismael faz chegar um bilhete para a sua avó, com assinatura de um suposto médico do hospital comunicando-lhe de sua alta. A equipe é surpreendida com este fato e a avó justifica: “eu vim dizer que essa letra é dele, sei que vocês não mandam bilhete, agora eu pergunto a vocês: isso é coisa de maluco?” Palavras da avó.
Ismael havia saído de alta desta internação e em 10 dias retornava para a emergência. Sua alta será justificada mais adiante. As equipes, tanto da emergência como da enfermaria masculina, questionavam-se sobre e efetiva validade das reinternações de Ismael, uma vez que se mantinha sem alteração em seu quadro. Entendiam que o próprio ambiente da internação contribuía para o ciclo vicioso das atuações, como agressividade e inadequação de condutas, que acabavam por adiar as perspectivas de alta, sem entretanto, trazer efetivas melhoras clínicas. Um episódio de uso de maconha junto com outros pacientes, dentro da enfermaria, acabou precipitando sua alta com encaminhamento para São Gonçalo, pois ficaria morando junto com a bisavó materna. Mais uma vez ele retornava com a mãe que expunha os mesmos impasses das últimas admissões, ou seja, impulsividade, heteroagressividade, hostilidade relativo a familiares e vizinhos. Foi encaminhado, mais uma vez ao leito de observação na emergência para melhor avaliação do caso, uma vez que a possibilidade de mandá-lo embora, parecia ser, mais uma vez, o adiamento deste problema. Porém, a permanência dele na observação foi bastante difícil. Ele estava permanentemente criando situações que chamavam à intervenção de um limite. O espaço fechado parecia o deixar ansioso: fumava compulsivamente e mantinha atitude apelativa, sempre reivindicativa. Foi decidido encaminhá-lo a uma internação em clínica contratada pelo SUS pela falta de vagas no hospital municipal de referência e, tendo em vista o péssimo suporte familiar, foi preciso pensar que ainda havia o que ser observado no campo da psiquiatria que girava em torno da questão diagnóstica.
Isto ocorreu em setembro de 2000. Em junho de 2001 estava fora da internação e de volta a emergência solicitando internação. Ao receber a negativa começa a falar que tem gente o perseguindo, que tem veneno na sua comida, mas isso não convence a equipe que avalia como uma simulação. Ismael não consegue sustentar tais argumentos. Retorna no mesmo dia com o Corpo de Bombeiros: estava jogando paus e pedras para cima, em frente ao hospital, do outro lado da rua. Foi encaminhado novamente a internação onde lá permaneceu por longo período novamente.
No ano seguinte Ismael retorna a emergência, mais uma vez, solicitando internação. Sua peregrinação era mensal: setembro, outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro e março de 2003. Sempre pouco cooperativo, irritado, hostil, ameaçando a equipe que voltaria com o Corpo de Bombeiros caso não o internássemos e ele de fato retornava com os militares. Mas ele não foi internado nesta época, a equipe conseguia mantê-lo apenas em observação por uma ou duas noites e ele saía. Sempre com muita dificuldade de aceitação familiar. Foi parar em abrigos religiosos e da Prefeitura.
No ano de 2004, perdemos os passos de Ismael. Em 2005, mais um pedido de internação, mas dessa vez corroborado pelos familiares. Ele veio com o SAMU pois havia quebrado todos os vidros da casa da avó alegando que esta estava “escondendo sua mãe dele”. A princípio isto soa delirante: ele acha que a avó esconde a mãe dele? Mas isso é verdade: a avó não diz a Ismael o paradeiro da mãe e isso é real e persiste até hoje. Nesta ocasião, ele quebrou o vidro da recepção da emergência, agrediu a equipe, jogou as cadeiras na parede e foi encaminhado a internação onde permaneceu por 5 meses. Quando recebeu alta, sua avó o trouxe no dia seguinte para a emergência. Estava muito irritada com ele e vice-versa. Ismael pede para ser transferido para um hospital no Rio de Janeiro e recebeu mais uma negativa o que o fez voltar ao hospital horas depois, subir no telhado e jogar pedras nos carros do estacionamento alegando que estava nervoso e que precisava ficar internado: “Não exibe verdadeira agitação psicomotora posto que seus movimentos são planejados e para fins específicos e sempre cuidados de forma que ele não corra riscos. Não se cortou, nem se machucou em nenhum momento”. (Prontuário) Passou a noite na observação e foi liberado no dia seguinte.
Em 2006, novamente, passou 10 meses internado. Esta internação teve um caráter diferenciado. A equipe de supervisão iniciou um trabalho junto com o ambulatório para inserir Ismael em dispositivo de atenção intensiva, um hospital-dia. Isso de fato aconteceu, ele passou a freqüentar este dispositivo duas vezes na semana ainda internado. Seu comportamento era o mesmo: irritado, hostil com a equipe. O ambulatório sugeriu que ele morasse em um abrigo que não havia como retornar para casa. A avó chegou a dizer a ele que sua mãe havia morrido, mas isso não o convenceu.
Quando recebeu alta, não foi mais ao hospital-dia o que fez com que ele mais uma vez retornasse para a internação. Sua última internação lá foi em outubro de 2006, porém no ano de 2007, Ismael esteve internado em uma clínica conveniada em Jacarepaguá, por vários meses.
Hoje encontra-se aqui, em mais uma longa internação, nos colocando diante da mesma questão: o que fazer com Isaque? Em que se deter? Em sua história, em seu diagnóstico?
Segundo Henry Ey, em seu ‘Manual de Psiquiatria’, na seção denominada Doenças Mentais Crônicas, há um capítulo sobre Desequilíbrio Psíquico em que ele disserta sobre o que chama de Personalidades Psicopáticas, definindo-as: “Certas anomalias da personalidade conjugam, em proporções variáveis, de um indivíduo para o outro, a inadaptação à vida social, a instabilidade do comportamento e a facilidade de atuação, associadas, eventualmente, a distúrbios psiquiátricos diversos (depressão, excitação, bouffées delirantes, perversões sexuais, toxicomanias). Estes tipos de ‘borderline’ dão margem, com freqüência, a dificuldades consideráveis do ponto de vista médico-legal e da assistência. E não são menores as dificuldades para a compreensão da psiquiatria. Em geral, estando nos limites da psiquiatria e da criminologia, constituem um grupo de ‘casos difíceis’ sob todos os aspectos, e devemos nos esforçar para superar a simples descrição dos distúrbios e tentar descobrir em que eles se distinguem das estruturas neurótica, psicótica ou perversa”.
Parece-me que a história do distúrbio de Ismael já é um sintoma, um sintoma de que algo não vai bem desde sempre. Aos 2 anos batia com a cabeça na parede, aos 8 iniciou tratamento com neurolépticos, aos 15 teve sua primeira de uma série de internações. Os tios batiam muito nele no intuito de aprender o que é certo e errado, pois a mãe não conseguia educá-lo. Ela e uma irmã fazem tratamento psiquiátrico.
Ainda segundo Henry Ey, as diversas formas clínicas deste distúrbio, deste desequilíbrio psíquico, acarretam muitos problemas diagnósticos, pois elas tomam emprestado, precisamente, suas particularidades de alguns traços de estruturas vizinhas. Existem, portanto, 5 tipos dos quais destaco apenas 1, mas os cito: neurótico, psicótico, perverso (exibicionismo e voyerismo), epilético e delinqüência infanto-juvenil. Destaquei o segundo tipo, o psicótico, definido da seguinte maneira por Henry Ey: “É no adolescente que a psicopatia pode surgir como prefácio de uma evolução esquizofrênica ou como a ‘cicatrização’ de uma psicose infantil. Neste caso, o comportamento impulsivo aparece como a superfície de uma posição psicótica, tipo de ‘autismo apático’ com crises catatônicas, esteriotipias verbais e motoras sobre um fundo de permanente mau humor”. Isso descreve Ismael. Porém, coloco aqui, um outro ponto de vista, com pequenos detalhes colhidos através da escrita deste trabalho.
O que é esse constante pedido de internação? Isso falaria de certa impossibilidade de responder a uma convocação social, que neste momento é ‘se virar sozinho’, afirmação imposta por sua família? Em termos de autonomia? Ismael é tão autônomo assim? Ele afirma em alguns momentos que ‘sozinho não dá’.
Estamos diante de que estrutura? Em que se deter?
Hoje ele ainda está internado, com as mesmas complicações familiares.
Sua avó já está há 2 meses pagando um quarto para ele no Centro de Niterói e alegando: ‘eu banco mas não cuido’.
Este caso nos demonstra o tão complexo é uma internação psiquiátrica e o quanto é importante sempre tecermos um diálogo com outros pares para nos elucidarem sobre algumas questões. Ainda não temos clareza do diagnóstico de Ismael, mas uma coisa temos certeza: é um sujeito que precisa de nossa ajuda. Nosso ato é estar junto dele onde ele estiver, internado ou não.
Adriana Cabana de Q. Andrade

terça-feira, 7 de abril de 2009

"A História das Vozes" - Estudo Psicanalítico sobre um caso de psicose.

Monografia apresentada na conclusão do Curso de Especialização em Saúde Mental e Laço Social em nível de Residência em Saúde Mental [Universidade Federal Flumense e Hospital Psiquiátrico de Jurujuba] Agosto de 2004.
Resumo:
No trabalho produzido ao término de uma etapa de minha formação, procurei contemplar duas vertentes: o amadurecimento de uma clínica voltada ao campo da Saúde Mental, como resposta a uma passagem de 2 anos, como residente, pelo Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, e o aprofundamento teórico fruto de um estudo em parceria com a Universidade Federal Fluminense.
A articulação acadêmico-clínica permitiu a adoção da Psicanálise como o modelo teórico que permeou esta produção. Como referencial teórico utilizei-me da curiosidade de Sigmund Freud em relação a diferenciação estrutural entre neurose e psicose; de Jacques Lacan retirei a importância da observação dos fenômenos elementares da psicose, atribuindo às alucinações auditivas o testemunho da existência de um sujeito foracluído; em Marcel Czermark me apropriei de uma leitura psicanalítica do fenômeno psiquiátrico do automatismo mental.
A escolha deste caso específico, o caso de J., foi influenciado pelo meu encontro com este paciente enquanto ele ainda estava internado na enfermaria masculina do HPJ. Era setembro de 2002, primeiro ano de residência e J. já estava internado há 1 ano neste setor.
Mas por quê escolher J. e não X, Y ou Z ? J. causava-me curiosidade. Sua existência psicótica, aniquilada pelas vozes, fazia-me refletir sobre a brutal diferença de estrutura. Não poderia recuar, e diante de tal desafio, ao avançar, escrevi a ‘história das vozes’, ditada por ele.
O caso de J. é singular justamente por trazer à tona questões sobre a estrutura e o mecanismo da psicose, sobre a transferência, direção do tratamento e paternidade. Sua psicose demonstrou a aridez de uma subjetividade ora ‘morto’, ora ‘vivo’, ora ‘morto-vivo’.
Ao estudar seu vasto prontuário de 4 volumes, deparei-me com uma história de vida imersa em sofrimento, uma eterna luta entre o ‘bem’ e o ‘mal’, entre a ‘vida’ e a ‘morte’. Este dualismo está registrado no capítulo 1 e é denominado por J. como ‘psicose da infância’ e por mim de automatismo mental, uma posição que ‘amortece’ o sujeito. Para dar conta desta questão, baseei-me na clínica do automatismo mental de Clérambault que teve sua origem na observação de casos onde o delírio ocupava um lugar mínimo em relação aos fenômenos alucinatórios. A psicose alucinatória crônica se decompõe, segundo Clérambault, em duas partes: um núcleo, que é o automatismo e uma superestrutura, que é o delírio, porém, não sendo esta última observada em J., uma vez que, ainda não é possível, para ele, construir algo que faça uma suplência.
J. apresentava, na primeira fase de sua doença, ou seja, na ‘psicose da infância’, um caráter neutro e automático que, por vezes, caracterizava-se simplesmente como a consciência de um estado de morbidade: acreditava ter câncer no estômago, aids, bolo na garganta, ‘falta de fezes’. Existiam fenômenos sutis de interferência que vinham perturbar o conteúdo do seu pensamento: o Diabo operava em seu corpo a mando de Deus que castigava-lhe causando-lhe as mais terríveis doenças. Tal fato trazia toda uma fenomenologia que poderia ser descrita como eco do pensamento, enunciação dos gestos e comentários dos atos. O mundo exterior fazia uma certa relação com ele onde se via tomado, comandado, infectado, amaldiçoado por algo que não denominava, ainda, como uma ‘voz’, mas também não era nomeado por ele de alguma forma. Era uma certeza de que seu corpo era um campo de batalha entre Deus e Diabo. Restava a ele, a atitude nobre, de retirar-se da batalha e tornar-se vassalo e espectador. Com isso, assumia a posição de ‘morto’ como em um jogo de buraco, estava lá, mas do lado de fora da partida. A idéia de morte subjetiva parece resolver o conflito, se levarmos em conta que Freud nos mostra ser esta a verdadeira satisfação pulsional. J. parece trazer essa discussão à tona quando pede para morrer, demonstra que a maior dificuldade da psicose é manter-se ‘vivo’. Uma ‘convulsão’ muda o fim da partida. As alucinações auditivas tornam-se francas e passam a denunciar um sujeito totalmente falido em suas bases simbólicas. Como diz o próprio J.: “a convulsão mudou tudo, antes eu não ouvia vozes, agora é só o que eu faço e não me acontece nada: eu nem morro, nem paro de ouvir estas vozes. Tem uma ‘psicose de agora’ que misturou-se com a ‘psicose da infância”.
A subjetividade psicótica demonstra uma série de ‘problemas’ e o principal deles diz respeito à foraclusão do Nome-do-Pai, aquele que delimita uma existência, aquele que introduz o ‘não”. Falamos, portanto, do ‘não-do-pai’. A psicose de J. testemunha um desespero do sujeito em encontrar aquilo que delimita o campo simbólico, aquele que ‘dê-limite’. As atuações de J., tantas vezes descritas de maneira minuciosa no capítulo 2, atestam uma tentativa, frustrada, de não ser mais invadido e tomado pelas vozes. É como se houvesse um desapego à palavra e um apego ao que é alucinatório.
J. pedia pela sua morte, pedia que eu o matasse, sozinho era impossível barrar a invasão da linguagem. Este pedido a mim direcionado, trazia em seu interior o peso da transferência. Quando nos propomos a trabalhar com pacientes psicóticos através da ética da psicanálise, deparamo-nos, muitas vezes, com um pedido de alívio do sofrimento, com uma impossibilidade estrutural de tomar para si as injunções que a vida lhe impõe. O manicômio talvez exista para ser o lugar onde a loucura possa habitar.
Meu objetivo no capítulo 2 foi dar valor à palavra do paciente, apostando que ele poderia reposicionar-se de forma diversa em sua estrutura. Deparei-me com o lugar que ele determinou para ‘Cabanita’, fazendo do ‘confessiotório’, um neologismo que significa exatamente a junção destes dois significantes: ‘confessar’ e ‘ambulatório’, um lugar onde ‘as vozes dão uma trégua’. Dar o testemunho de sua psicose é categorizá-la em duas: ‘psicose da infância’ e ‘psicose de agora’.
No capítulo 3 encaminho minhas reflexões no sentido de identificar o que ocorreu com J. para ser totalmente invadido pelas alucinações?
Arrisco dizer que as vozes tratam de sua subjetividade, atestam que há ‘vida’ naquele sujeito, precária, aniquilada, mas há. No campo de batalha, além de Deus e o Diabo, agora temos J. tentando manter-se ‘vivo’ dentro de sua total fragmentação. Seu pensamento, ao tornar-se auditivo, adquire características de exterioridade, mas falam dele: é sua comida que está intoxicada, é sua bebida que tem cocaína, é sua casa que está amaldiçoada, ‘é sua voz que traduz em palavras o que as vozes lhe dizem na sua cabeça’. Ao utilizar-se das palavras, J. afastava-se das vozes e de tudo o que elas lhe traziam: a passagem ao ato.
Sustentar-se no interior de seu automatismo seria morrer subjetivamente. Sustentar-se como sujeito seria estar diante de uma avalanche de significantes. Sustentar-se como delirante seria impossível para ele, suas tentativas demonstravam-se falhas. Apesar deste quadro clínico foi possível construir formas de vivência extra-muros, tais como: morar em um hotel, andar de ônibus sozinho, fazer acordos sociais e pedir que sua psicose fosse explicada ao mundo.
Contudo, ao tentar construir um delírio místico no ‘confessiotório’, J. não conseguiu sustentar-se, sendo novamente invadido pelas vozes que retornavam ao campo de batalha diária. J. estava de alta, porém 3 meses, foi o tempo suficiente para percebermos que ‘autonomia’ ainda não era um significante de seu campo simbólico. J. retorna para a internação e encontra-se lá até os dias de hoje. Hoje, 2009, é morador do Hopsital em um dispositivo denominado de Albergue.
Das minhas reflexões e impasses, pude concluir que, neste caso, ‘psicose da infância’ e ‘psicose de agora’ são duas forças em oposição: morte e subjetivação, automatismo mental e alucinações auditivas.
O que J. ensinou-me é que trabalhar com a psicose é trabalhar sem esperanças, é trabalhar com a ética e o respeito de que ali apresenta-se um sujeito, esteja ele como estiver, ‘vivo’ ou ‘morto’.
A ‘história das vozes’, portanto, pode ser resumida assim: eterna luta entre o bem e o mal, entre a morte e a subjetivação, entre Deus e o Diabo em seu corpo, entre o dentro e o fora da instituição.
Adriana Cabana de Q. Andrade

Idealizadores do Blog [SPA da MENTE - Psicologia Aplicada e Acadêmica]

Adriana Cabana de Q. Andrade
Psicóloga Clínica
Especialista em Saúde Mental pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Mestranda do Curso de Psicanálise e Laço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)


Carlos Bezerra
Gestalt Terapeuta
Especialista em Gestalt Terapia pela Celso Lisboa (CECL)
Professor Univesritário


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